Apresentação
Paula Guerra e Glaucia Villas Boas
É com desmedido contentamento que apresentamos o segundo número da revista Todas as Artes. Revista Luso-Brasileira de Artes e Cultura. O segundo número de qualquer publicação é a sua prova de fogo e não deixa de ser o mesmo no nosso caso. Assim, neste ano de 2018, conseguimos operacionalizar um sonho antigo de termos um espaço de reflexão e problematização em torno da arte e da cultura em tempos tão alterados pela intolerância, pela violência, pelo populismo e pela dominação de saberes e crenças. Acreditamos que as artes e a cultura são poderosos disjuntores societais, pois acionam espaços, tempos, matrizes de liberdade.
Artigos
Chamarrita: uma chama da cultura açoriana na América gaúcha
José Machado Pais
RESUMO: Brevíssimas incursões etnográficas pelo sul do Brasil em busca de fandangos batidos acompanhados à viola, outrora tão populares, levaram à descoberta da sua evasão. Um achado por explicar. Em contrapartida, constatou-se um apreço por danças acompanhadas de acordeão, entre elas algumas vindas dos Açores, como o Pezinho e a Chamarrita. Esta última dança (no Brasil, Chimarrita) viria a propagar-se por toda a América gaúcha, entrecruzando-se com o Chamamé. Através de sucessivas incursões no tempo histórico, o que neste contributo se questiona é a presença desta chama da cultura açoriana na região do Rio da Prata. Para o efeito, propõe-se como bússola metodológica o conceito de circunvagação, ao permitir discernir processos de disseminação cultural associados a cronotopos de encontro e de caminho (Bakhtin).
Palavras-chave: chimarrita, fandango, chamamé, trânsitos culturais, identidades
Prix litteraires et crises identitaires: l’écrivain à l’épreuve de la gloire
Nathalie Heinich
RÉSUMÉ: Parmi les différentes façons d’accéder à la gloire, les prix littéraires offrent au chercheur plusieurs avantages. Ils opèrent tout d’abord un changement massif et quasi instantané de statut, que prolonge et matérialise le support du livre bien au-delá du lien et du moment de l’événement: ce qui n’est pas le cas par exemple des vedettes du sport, susceptibles elles aussi de devenir d’une minute à l’autre des héros, mais dont l’exploit ne peut circuler de main en main. En outre les sujets concernés font profession de s’exprimer, ce qui confère à leur témoignage une richesse et une précision exceptionnelles. Enfin, pour peu qu’on les étudie dans l’actualité, ils offrent cette spectaculaire intensification de l’épreuve de gloire qu’autorisent les moyens modernes de communication: photographie, téléphone, radio, télévision, qui amplifient et accélèrent l’accès à la notoriété. Aussi y a-t-il là l’équivalent d’un formidable laboratoire experimental pour le chercheur désireux d’aborder, à travers cette épreuve identitaire qu’est l’accès à la gloire littéraire, la question plus générale des conditions de lídentité.
Mots-clés: prix littéraires, littérature, reconnaissance, consécration
“Burro sem rabo”: uma etnografia de resíduos digitais de Hapax
Tatiana Bacal
RESUMO: A partir de performance “Burro sem rabo” do coletivo Hapax, que consiste em uma série de performances de deriva urbana com obetivo de ocupar espaços marginalizados de grandes centros urbanos e intervir na paisagem sonora da cidade, proponho uma etnografia dos resíduos: registros sonoros, escritos e audiovisuais. Estes registros, que são criações em si mesmas, passam a ter o poder de inventar uma nova experiência, operando como ‘pessoas entendidas’ das performances originais. Com esta abordagem, é possível refletir sobre a relevância dos registros para as performances e sobre a própria internet como espaço fundamental para uma etnografia dos resíduos.
Palavras-chave: identidade, performance, deriva urbana, coletivo Hapax
O mundo da arte urbana emergente: contextos e atores
Ricardo Campos e Ágata Sequeira
RESUMO: A partir da década de 90 do século passado, o fenómeno do graffiti passou a fazer parte da paisagem das cidades portuguesas. O graffiti emergente neste período derivava de uma manifestação cultural com cerca de duas décadas de vida, tendo por origem as cidades de Filadélfia e Nova Iorque. Nos últimos anos a tolerância social a estas manifestações de índole popular e informal foi aumentando, o que resultou, em paralelo, numa crescente legitimação e institucionalização destas práticas. Convivendo com o graffiti na cidade deparamo-nos, hoje, com um conjunto de outras expressões estéticas e artísticas que derivam deste fenómeno. No discurso comum e especializado encontramos recorrentes alusões à street art ou arte urbana. Neste artigo argumentamos que a arte urbana se tem vindo a constituir enquanto um mundo da arte (Becker, 2010) ou um campo de produção artística emergente (Bourdieu, 1996). A nossa reflexão parte de um projeto atualmente em curso na Área Metropolitana de Lisboa, em que se procurou entrevistar um conjunto variado de atores sociais associados a este campo.
Palavras-chave: arte urbana, graffiti, street art, mundo da arte, campo artístico
Caleidoscópio de imagens vividas: entre formas artísticas e modos de crer na obra de José Tarcísio
Kadma Marques Rodrigues e Diego Soares Rebouças
RESUMO: A abordagem de uma produção plástica que envolve trânsitos simbólicos e sociais entre arte, cultura e religiosidade, pode constituir objeto tanto da sociologia da religião, quanto daquela voltada à arte. Fundamentando-se nesta última, este artigo investiga exposições individuais do artista Zé Tarcísio, a partir de dois movimentos de convergência entre sua obra e representações do catolicismo popular. A partir da coleção de ex-votos do artista, o primeiro movimento parte de obras conceituais, àquelas materializadas em objetos; o segundo, de imagens que levam a experiência visual humana ao seu limite corpóreo, àquelas que conformam um olhar desmaterializado e sincrético, de temporalidade não-linear. A lógica compositiva e expositiva destas últimas, materializando o sagrado em geometrías caleidoscópicas, manifesta processos de subjetivação da crença, sobrepondo modos do crer e do ver.
Palavras-chaves: artista, visão expandida, modalidade do crer, caleidoscópio, imagem
Espaços literários e trajetórias intelectuais na Bahia (1880-1920)
Cecília Sepúlveda e Paulo Cesar Alves
RESUMO: O artigo tem por principal objetivo explorar o significado de “espaço literário” como um componente fundamental do “mundo da literatura” (diferentes práticas sociais que possibilitam o fenômeno literário). Esses espaços são constituídos através de redes de sociabilidade, cujos membros compartilham certos interesses comuns. Conferem “visibilidade social” aos escritores e geram diferentes públicos, com morfologias, comportamentos, motivações e emoções específicas. Mais especificamente, analisamos a trajetória de cinco intelectuais/literatos baianos nos espaços criados em Salvador na passagem do século XIX para o XX: Manuel Querino, Xavier Marques, Anna Ribeiro Bittencourt, Silva Lima e José Manuel Cardoso de Oliveira.
Palavras-chave: espaço intelectual/literário, trajetórias literárias, modernidade baiana
Registos de Pesquisa
Criatividade e improvisação cultural dez anos depois: uma atualização
Tim Ingold, Elizabeth Hallam, Patricia Reinheimer
RESUMO: Mais de dez anos se passaram desde que escrevemos a introdução para o livro Criatividade e improvisação Cultural. Tinha sido uma tarefa assustadora, não apenas por causa do caráter variável das nossas palavras-chave. Se era muito difícil definir o conceito de cultura; a definição dos conceitos de criatividade e de improvisação era quase impossível. Estes últimos termos, no entanto, colocaram desafios diferentes. Notamos, em 2007, que o conceito de criatividade atraia muito mais atenção crítica do que o conceito de improvisação, e esse continua sendo o caso. A literatura sobre criatividade explodiu, embora mais fora do que dentro da antropologia, em áreas como psicologia cognitiva, inteligência artificial, educação e administração. Discussões sobre improvisação, por outro lado, permanecem em grande parte confinadas a estudos de desempenho experimental, situados na música, no teatro e na dança. Distribuídos entre domínios disciplinares separados, cada um ainda é discutido isoladamente passados 10 anos.
Palavras-chave: cultura, criatividade, improvisação cultural, antropologia
Criatividade e improvisação cultural: uma introdução
Tim Ingold, Elizabeth Hallam, Patricia Reinheimer e Camila Damico Medina
RESUMO: A partir do pressuposto de que a “vida social e cultural não possui roteiros fixos”, os autores apontam e desenvolvem os quatro pontos principais daquilo que entendem por improvisação: improvisação generativa, a improvisação relacional, a improvisação temporal e a improvisação o como o modo como funcionamos. Assim entendida, a improvisação é crucial para a maneira pela qual se atua na vida social, e ainda na reflexão sobre ela que se expressa na arte, na literatura e na ciência.
Palavras-chave: Improvisação generativa, improvisação relacional, improvisação temporal, improvisação como agência
Recensões/Resenhas
O Universo de Luxo por Renato Ortiz
Maria Lucia Bueno
Em seu livro o Universo de Luxo, (São Paulo: Editora Alameda, 2019), o sociólogo Renato Ortiz analisa a dinâmica desse espaço singular no contexto mundial, a partir de recortes metodológicos, transformados em capítulos, como o mercado de bens de luxo, a distinção e sobreposição das fronteiras entre arte e luxo, o mundo dos ricos, além de questões à autenticidade e ao gosto na esfera do consumo.