Apresentação
Paula Guerra e Lígia Dabul
Miguel Torga dizia-nos que a arte é sincera, que a política é sincera e que o amor é sincero. E tudo isso é explicado por um dicionário. Diz-nos também que sábios são aqueles que disseram que os músculos da laringe é que pensavam, isto é, pensavam e articulavam as palavras. Neste número, arriscamo-nos a afirmar que estamos perante um conjunto de laringes que pensam e articulam ideias. Ideias que são inovadoras no campo da academia. A palavra, neste número, é o destaque, pois diz respeito a tudo o que é inexprimível de outra forma. Fala-nos da (e à) alma e da necessidade insaciável do saber.
Artigos
Conteúdos em busca de forma: A poética na escrita sociológica
Glória Diógenes e Irlys Barreira
A escrita quase nunca é pensada do ponto de vista da forma nas ciências sociais. Se na literatura ou na poesia a forma constitui um dos elementos fundamentais de expressão textual, é comum falarmos que, em ciências sociais, o que importa é a transmissão de conteúdo. Não são poucos os aconselhamentos que afirmam a necessidade de objetivos concisos e linguagem direta na execução de trabalhos acadêmicos, de modo a construir uma relação bem concatenada entre as partes do texto. É como se a elaboração do documento “científico” estivesse mais voltada para a tarefa de um ordenamento baseado na legitimação e apresentação dos dados, em diálogo com autores consagrados, incluindo-se alguma reflexão sobre as possibilidades estéticas da exposição.
Palavras-chave: escrita sociológica, poética, forma, conteúdo
O romance e a cultura da violência
José Vicente Tavares dos Santos
Qual a relação entre violência e autoritarismo na sociedade brasileira? Como se combinam autoritarismo e violência? De que modo a literatura pode expressar essa cultura da violência? Poderia uma sociologia da violência e da conflitualidade contribuir a uma explicação sociológica abrangente e complexa da sociedade brasileira? A hipótese deste artigo é que, a partir da análise de figuras literárias nos romances, podemos sugerir a existência de uma representação na sociedade contemporânea baseada na violência como norma social, sendo expressão de uma cultura da violência socialmente legitimada.
Palavras-chave: Brasil, sociología da violência, literatura, autoritarismo
Fazer arte e ganhar a vida: Uma análise de aspectos sociais e econômicos do trabalho artístico musical de duas musicistas em São Luís – MA
Paulo Keller
Esse artigo traz contribuições ao debate sobre o trabalho artístico musical a partir de reflexões teóricas e dados empíricos do projeto de pesquisa: “O trabalho do artista: Investigação social das relações de trabalho na produção musical contemporânea e do mercado de trabalho do músico”. Nossa investigação sobre questões do trabalho e da vida social e econômica artística parte de uma abordagem do trabalho como uma experiência de vida imersa em relações sociais mais amplas da cultura e da sociedade, pensando a música como uma prática de múltiplas dimensões e significados sociais. Aqui investigamos dois estudos de caso de duas musicistas, Maria do Socorro Silva (cantora e compositora conhecida como Palativa) pertencente ao mundo do samba e da boemia, e, Célia Sampaio (cantora conhecida como a Dama do Reggae) pertencente ao mundo do reggae e do movimiento negro, nos levam a qustões específicas do trabalho e da vida social do artista de origem popular, a pensar as suas incertezas, precariedades e intermitências.
Palavras-chave: arte, música, trabalho artístico
‘No início havia o Jaime’: A loucura em Portugal no tempo presente a partir de uma escrita compartilhada
Viaviane Borges e Sandro Resende
Partiremos da emergência de Jaime Fernandes, internado por cerca de 30 anos no Hospital Miguel Bombarda sob diagnóstico de esquizofrenia paranoide, para historicizar as nuanças do binômio arte-loucura em Portugal no tempo presente. Uma configuração perpassada por três movimentos imbricados, sendo o primeiro deles a repercussão das criações de internos do Hospital Miguel Bombarda, através do Museu Miguel Bombarda e da Associação Portuguesa de Arte Outsider (APAO) e da instituição de Jaime como artista bruto. O segundo, a configuração de uma coleção particular, atualmente depositada na Oliva Creative Factory, em São João da Madeira, que reúne nomes importantes da arte bruta. O terceiro consiste em um desejo de despertar uma sensibilidade pública a respeito da arte realizada por pessoas que tiveram experiências de internamento psiquiátrico, vinculado a projetos que atiram do Hospital Júlio de Matos. São estes três movimentos que conduzem o texto, não seguindo necessariamente uma linearidade, mas procurando mostrar quais as sensibilidades por eles equalizadas na tentativa de instituir valor as obras dos desviantes e possibilitando novos sentidos para os usos da loucura na invenção de novos artistas. Para além de enfrentar estas questões muito vivas, o texto foi tecido a partir de uma perspetiva de escrita compartilhada pensada a partir dos referenciais da história pública.
Palavras-chave: loucura, arte bruta, história do tempo presente, história pública
(Des)Construindo mapas, revelando espacializações: Narrativas cartográficas de uma etnografia em uma periferia urbana da cidade de Porto Alegre / RS
Ana Patrícia Barbosa e Ana Luiza Carvalho da Rocha
Este artigo apresenta dados da investigação de doutoramento, onde me aproximo da viagem etnográfica realizada em Vila Cruzeiro do Sul, em Porto Alegre/RS/Brasil, com ênfase nas dinâmicas territoriais e processos de identidade das populações periféricas. Pretendia analisar como se tecem redes de sociabilidade, em prol da melhoria das suas condições de vida, bem como como se (re)afirmam num contexto emergente de problemas sócio-espaciais que marcam as grandes metrópoles brasileiras e se circunscrevem sob as condições estruturais de pobreza, violência e segregação espacial. Neste estudo, através da aproximação ao método etnográfico, investiguei os sentidos e significados das transformações territoriais na vida dos habitantes desta região, fornecendo uma perspectiva interdisciplinar para o estudo do tema proposto. Para desenvolver esta perspectiva analítica, apresento uma cartografia espaçotemporal das territorialidades com vista a revelar experiências urbanas atravessadas por várias formas de vulnerabilidades.
Palavras-chave: territorialidade, sociabilidade, redes, vulnerabilidades
Quando a vida imita a arte: Zombificação
Ondina Pires
O realizador norte-americano George A. Romero (1940-2017) foi premonitório na “zombificação” do ser humano no mundo ocidental ao mostrar nos seus filmes de “zombies” seres humanos errantes, descarnados, alienados e sedentos de carne – a grande metáfora da vida moderna, tecnológica, inorgânica, consumista e decadente. Se compararmos o que aconteceu no dia 6 de janeiro de 2021 dentro e fora do Capitólio, em Washington D.C., às imagens de alguns dos filmes de Romero, e se compararmos as atitudes prepotentes, a roçarem a idiotia completa, do ex-presidente norte-americano Donald Trump, com o filme “Idiocracy” do realizador Mike Judge, somos levados a acreditar que a Vida imita a Arte. Os filmes de Romero e o filme de Judge são anteriores aos fatos históricos recentes da eleição de Donald Trump e do ataque ao Capitólio o que nos faz pensar que o referencial cultural e espiritual de grande parte dos seres humanos do mundo ocidental está em declínio. O que se pretende neste pequeno texto é demonstrar como o poder da imagem fílmica conduz as grandes massas de pessoas a comportamentos “zombificados” como se de uma mimese inconsciente e coletiva se tratasse. E enquanto o mundo ocidental se desfragmenta com realidades como o Brexit, querelas ideológicas, birras de negacionistas em relação ao Covid19 e ausência de solidariedade social, outros povos se erguem para reclamar o seu quinhão do mundo, leia-se o governo chinês e o governo russo.
Palavras-chave: arte, imagem filmica, zombificação
Registos de Pesquisa
Maze, um artista que penhora o coração em canções de evolução
Sofia Sousa
Maze é o nome artístico de André Neves, que insere as suas produções artísticas no âmbito da street art e da música urbana. É MC dos Dealema e também um pioneiro no que toca ao graffiti portuense e ao hip-hop. Na entrevista aqui apresentada, foi discutido o seu percurso artístico, mas também os impactos da COVID-19 nos processos de music-making. Paralelamente, também abordámos tópicos como a importância do uso das artes enquanto forma de inclusão social e redução de sentimentos de insegurança.
Palavras-chave: music-making, intervention through arts, social inclusion, hip-hop
Recensões/Resenhas
Um mercado sentido sociologicamente. Um ensaio sobre as palavras, as memórias e as identidades
Rui Saraiva
Se nos interrogássemos como é possível criar uma construção individual e/ou coletiva a partir de um lugar presente na nossa memória descritiva e afetiva – sobre a qual revíssemos nela mesma os sentimentos afetivos e decadentes do espaço, por nós projetados, e ao mesmo tempo, o que este projetou e projeta na nossa memória , certamente encontrar-nos-íamos como pertencentes a esse mesmo espaço. Como tal, este registo de pesquisa – assente numa metodologia de caráter qualitativo – estabelece um paralelismo entre o processo de produção e reprodução do espaço, neste caso particular do Mercado do Bolhão na Cidade do Porto, e os seus comerciantes. Questionámos a relação que os comerciantes têm com o mercado (ainda em fase de transição) e de que forma a mesma está enraizada nos seus seios familiares. Apoiamo-nos, portanto, numa posição histórica sobre o mercado e sobre os processos de reabilitação e renovação do tecido urbano, para enquadrar a necessidade de compreender onde é localizado simbólicamente o Mercado do Bolhão neste mesmo processo de mudança e como este é percecionado na cidade e pelos seus comerciantes.