Apresentação

Heterotopias, distopias e artes afins
Paula Guerra e Lígia Dabul

Após a leitura final deste Volume da Revista Todas as Artes, um conceito emergiu quasede imediato: o de heterotopia. Este conceito foi desenvolvido originalmente por Michel Foucault e surge, muito brevemente, no seu livro As palavras e as coisas (1999 [1966]) numa abordagem discursiva e linguística. Porém, mais tarde, o mesmo conceito volta a emergir numa conformidade espacial. Foucault, com a noção de heterotopia, vem estabelecer uma oposição ao conceito de utopia, que se referia a um conjunto de “sítios” quenão possuem um lugar na realidade. Uma heterotopia, pelo contrário, destaca a existência de múltiplos e complexos “sítios” presentes emtodas as sociedades.

 

Artigos

Mapeamento cultural. Enfrentar o desafio de políticas e planeamento culturais mais participativos e pluralistas
Nancy Duxbury

RESUMO: O termo mapeamento cultural refere-se tanto a um campo interdisciplinar de investigação, abrangendo uma série de abordagens utilizadas em diversos contextos  como a um instrumento e método de investigação, organização e apresentação; como uma praxis geradora  de insight, como instrumento de planeamento e desenvolvimento  participativo  incorporado no “envolvimento comunitário e criação de espaços para incorporar histórias multivocais” (Duxbury & Saper, 2015: n.p.). A evolução do mapeamento cultural entrelaça a investigação académica e artística com contextos políticos, de planeamento e de advocacia.  Os  seus  atuais  contornos metodológicos foram influenciados por cinco principais trajetórias de mapeamento cultural: empoderamento da comunidade e contra-mapeamento, política cultural, governança municipal, mapeamento como prática artística, e investigação académica . Este artigo fornece uma visão geral deste campo, identifica alguns dos objetivos e questões com os quais os investigadores estão atualmente envolvidos, e  oferece perguntas e sugestões para orientar os esforços no sentido de construir ligações mais estreitas com os domínios da política e planeamento culturais.

Palavras-chave: mapeamento cultural, planeamento, políticas culturais, desenvolvimento participativo

 

Music venues in transition: States of autonomy, dependence and subcultural institutionalization
Robin Kuchar

Taking into account changing spatial structures of local music scenes and processes of music production, urban regeneration, and the commercialization of live music during the last decades, this article examines how ongoing transformations of socio-spatial environments exert influence on originally do-it-yourself music venues as a specific kind of urban music space. Venues are understood as individual actors that develop in relation to their initial spatial and cultural strategies. Therefore, the status of these venues reaches from traditionalist but highly dependent to paradoxical forms of “subcultural institutionalization”. Based on empirical data from three case studies in Hamburg, Germany, fieldwork shows that DIY-driven clubs increasingly become hijacked or taken-over spaces that apply different strategies in order to preserve their idea(l)s of self-governed and collective cultural work.

Keywords: music venues, scenes, live music, subcultural institutionalization

 

Somos Todos Artistas. Um exercício de reflexão a respeito da autonomia criativa e das formas de classificação relacionadas à criação
Cyntia Carvalho Martins, Camila Do Valle

RESUMO: O artigo discorre sobre a construção da identidade de artistas de rua tomando como referência o movimento “A Vida é uma Festa”. Esse movimento ocorre desde 2002 e congrega artistas vinculados à música, às artes plásticas, ao teatro, à literatura de cordel, ao  tambor de crioula, à poesia e ao bumba-meu-boi com apresentações toda quinta-feira no Centro Histórico de São Luís, Maranhão. A abordagem inclui reflexões sobre as expressões, manifestas através da arte de rua e como tais práticas engendram a construção de redes de solidariedade entre os “artistas de rua”, de maneira a conferir um modo próprio de relação social. Na situação tomada para análise, o viés crítico das produções artísticas implica na construção de uma identidade centrada na negação da inserção nas relações de mercado e nas políticas institucionais.

Palavras-chave: artistas de rua, mercado de arte, institucionalização, movimentos sociais e movimentos artísticos

 

Revisitando o grotesco: O indefinível como transgressão na arte
Júlia Almeida de Mello

RESUMO: Este artigo apresenta uma análise do grotesco como elemento transgressor de cânones artísticos, normas e discursos dominantes em diferentes momentos da(s) história(s) da arte. Desde a sua manifestação como categoria estética em descrições da Domus Aurea no século XV até os corpos desordenados que confrontam categorizações na  arte  contemporânea, o grotesco está em constante movimento e, apesar de não poder ser  classificado, é imediatamente identificado como  provocador do olhar. Sob a perspectiva da cultural visual, atrelada  às questões de gênero e às políticas de identidade,  são focalizadas obras que se apropriam dos excessos, do “anormal”, do “estranho”, do ambíguo, bem como de outras facetas grotescas, para subverter e sugerir resistências. Os resultados revelam que o grotesco é tido como estratégia política de insubordinação em diferentes contextos, dialogando inclusive com as atuais propostas de provocação do dissenso na arte contemporânea.

Palavras-chave: arte, grotesco, corpo, gênero, política

 

Efervescências musicais e noturnidades no Beco das Artes
Cíntia Sanmartin Fernandes, Micael Herschmann

RESUMO: Nas ambiências mais líquidas que caracterizam a noturnidade e as festas, geralmente vivemos em um tempo mais lento e marcado: por um lado, por experiências sensíveis relevantes, variadas e muitas vezes intensas; e, por outro lado, por expectativas de mais liberdade e interação social entre os atores. Procurou-se neste artigo problematizar as repercussões diretas e indiretas – não só socioeconômicas, mas especialmente no imaginário da urbe – das experiências culturais noturnas que ocorrem nos eventos festivos realizados no Beco das Artes (no Centro da cidade do Rio de Janeiro), o qual se apresenta como um território aberto as serendipidades, capaz de mobilizar um segmento expressivo de atores que gravitam em torno de uma produção musical associada à cena alternativa local (e que, de modo geral, participam da cultura de rua carioca atual). Tendo em vista os objetivos traçados, essa investigação não só está alicerçada nos procedimentos teóricos-metodológicos da Sociologia dos Sentidos (e do Imaginário) fundada por Georg Simmel, mas também emprega estratégias metodológicas cartográficas (no processo de realização do trabalho de campo e acompanhamento da dinâmica de agregação dos atores nos territórios) inspiradas na Teoria Ator-Rede, notabilizada na obra seminal de Bruno Latour.

Palavras-chave: comunicação, cidade, música, imaginário, territorialidades

 

Adolescência e feminilidade no Anexo Secreto
Cândido Alberto da Costa Gomes

RESUMO: Este trabalho focaliza o desenvolvimento da adolescência em condições adversas, isto é, durante um genocídio. Foram  analisados como formas de auto expressão os escritos de Anne Frank, pelas  lentes  teóricas sobretudo de Simmel e Foucault. Assim, considera-se o Anexo Secreto, onde se refugiou, uma heterotopia ou não lugar. Indaga-se a respeito dos genocídios como manifestação do biopoder e forma de estrangeirização. No âmbito das relações de poder do refúgio, Anne se individualiza, desenvolve seu protagonismo e subjetividade, a interligar a busca de novas feminilidades, as reflexões políticas e uma rigorosa autocrítica, que a faz repensar-se.

Palavras-chave: adolescência, heterotopia, genocídios, feminilidades

 

Novas perspetivas: Moda & envelhecimento
Rosiane Neves

RESUMO: O presente ensaio pretender dar a conhecer as representações sociais da mulher na velhice no mundo da moda, com a finalidade de compreender este fenómeno social pouco investigado e de grande relevância social. Utilizámos para este estudo uma abordagem qualitativa, com amostragem de casos múltiplos, na Área Metropolitana do Porto e de entrevistados em Lisboa–Portugal, com a participação de 14 mulheres: idosas com mais de 65 anos (consumidoras) e profissionais da área da moda (design de moda, lojista, costureira, empresa de eventos  sociais) de  notório  reconhecimento  social. As entrevistas foram realizadas com base num guião semiestruturado, com o intuito de  captar as representações sociais das mulheres idosas e do contributo dos profissionais da moda face ao fenómeno estudado. O trabalho inclui as seguintes abordagens: aspetos sócio-histórico sobre a moda; o espaço da mulher na velhice no mundo da moda; pressupostos teóricos sobre envelhecimento e moda; metodologia utilizada; e, por fim, as  narrativas das mulheres na velhice no contexto português. Embora as mulheres idosas não compreendam o fenómeno da moda no envelhecimento, elas apontam as suas representações sociais sobre a moda neste grupo etário.

Palavras-chave: envelhecimento, moda, representações sociais, mulher, cultura

 

Registos de Pesquisa

Lead by example. Conversa com Mundo Segundo
Sofia Sousa

RESUMO: Mundo Segundo é MC, produtor e ex b-boy, mas é também uma figura incontornável do hip-hop português. É inclusive um dos mais ativos embaixadores do movimento em Portugal. Nesta entrevista, falamos sobre o  seu  percurso artístico e abordámos algumas questões que pautam a atualidade. Foi discutido o impacto da pandemia da COVID-19 no processo de music-making, refletimos sobre as relações entre música, saúde mental e bem-estar e, além disso, também obtivemos a sua visão sobre as potencialidades de uma intervenção social por via das artes, em contextos desfavorecidos e alvo de exclusão social. Paralelamente a estes tópicos, as perceções sobre a (in)segurança também foram alvo de reflexão.

Palavras-chave: carreiras artísticas, music-making, COVID-19, bem-estar, intervenção social pelas artes, exclusão social

 

“I want to find real readers, discover their responses to books and their reading practices”. The story of printed production by Martyn Lyons
Nathanael Araújo, Ana Paula Costa

Martyn Lyons is an Emeritus Professor of European History and Studies at the University of New South Wales, Australia. Specialist in the nineteenth and twentieth centuries, his main research interests are the history of the book, reading and writing, French history and Australian history. He published around sixteen books with the results of his work and gave us this interview at the Third Argentine Colloquium on Book and Edition Studies (CAELE), held in Buenos Aires, Argentina, from November 7 to 9, 2018. As a guest of honor, he presented the opening speech of the event entitled “The century of the typewriter. How the typewriter influenced writing practices” and generously, he agreed to give this interview to two young researchers in the field of publishing, book and reading in Brazil.

Keywords: Martyn Lyons, history of the book, reading and writing, publishing, Brazil

 

Recensões/Resenhas

Justiça social, igualdade e equidade no setor cultural e criativo: uma resenha do livro “Creative Justice – cultural industries, work and inequality” de Mark Banks
Pedro Quintela

Os estudos críticos sobre as modalidades específicas de organização domercado do trabalho nos diferentes setores de atividade que integram os domínios artísticos, culturais e criativos têm vindo, desde meados da primeira década de 2000, a suscitar um interesse e visibilidade crescentes por parte das ciências sociais, em geral, e da sociologia da cultura em particular, muito em especial no contexto  anglo-saxónico.